Poucos conceitos evocam com tanta clareza as incertezas da condição humana nesta mudança de milênio quanto os de ciência, tecnologia e sociedade. A produção de conhecimentos teve nas últimas décadas uma aceleração de tal magnitude que, para caracterizar a ciência, é menos significativa sua longa trajetória de séculos que o lugar privilegiado que ocupa no presente e as incertezas que suscita ao se pensar no futuro. Por sua vez, a tecnologia tem sido sempre elemento definidor do ser humano, inclusive muito mais que o próprio conhecimento científico, ao identificar-se o surgimento do técnico com a própria origem do humano. No entanto, nesta mudança de século, a prevalência da tecnologia na definição das condições da vida humana parece ter alcançado a essência ilimitada que Ortega y Gasset prognosticava em sua célebre Meditação da técnica. Desta forma, o próprio conceito de sociedade só pode ser adequadamente definido quando se o contextualiza no marco das mudanças tecnocientíficas do presente. Fenômenos como globalização, nova economia, sociedade de risco e a própria relação da humanidade com o entorno natural só se entendem quando forem postos em relação com as atuais condições do processo tecnocientífico e com os marcos de poderes, interesses e valores em que se desenvolvem.
Por isso os estudos sobre ciência, tecnologia e sociedade - habitualmente identificados pelo acrônimo CTS -, não são só relevantes desde os âmbitos acadêmicos em que tradicionalmente se desenvolveram as investigações históricas ou filosóficas sobre a ciência e a tecnologia. Ao colocar o processo tecnocientífico no contexto social e defender a necessidade da participação democrática na orientação do seu desenvolvimento, os estudos CTS adquirem uma relevância pública de primeira magnitude. Hoje, as questões relativas à ciência e à tecnologia e sua importância na definição das condições da vida humana extravasam o âmbito acadêmico para converter-se em centro de atenção e interesse do conjunto da sociedade.
Notícias espetaculares relacionadas com as biotecnologias ou as tecnologias da comunicação suscitam o interesse público e abrem debates sociais que ultrapassam a compreensão tradicional acerca das relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Antes a ciência era considerada como o modo de desentranhar os aspectos essenciais da realidade, de desvelar as leis que a governam em cada parcela do mundo natural ou do mundo social. Com o conhecimento dessas leis seria possível a transformação da realidade com o concurso dos procedimentos das tecnologias, que não seriam outra coisa senão ciências aplicadas à produção de artefatos. Nessa consideração clássica, a ciência e a tecnologia estariam afastadas de interesses, opiniões ou valores sociais, deixando seus resultados a serviço da sociedade para que esta decidisse o que fazer com eles. Salvo interferências alheias, a ciência e a tecnologia promoveriam, portanto, o bem-estar social ao desenvolver os instrumentos cognoscitivos e práticos para propiciar uma vida humana sempre melhor. Não obstante, hoje sabemos que esta consideração linear acerca das relações entre ciência, tecnologia e sociedade é excessivamente ingênua. As fronteiras precisas entre estes três conceitos se dissipam à medida que elas são analisadas com detalhes e contextualizadas no presente.
Ciência, tecnologia e sociedade configuram uma tríade conceitual mais complexa do que uma simples série sucessiva. Em primeiro lugar, o rompimento entre conhecimentos científicos e artefatos tecnológicos não é muito adequado, já que na própria configuração daqueles é necessário contar com estes. O conhecimento científico da realidade e sua transformação tecnológica não são processos independentes e sucessivos, senão que se encontram entrelaçados em uma trama em que constantemente se juntam teorias e dados empíricos com procedimentos técnicos e artefatos. Entretanto, por outro lado, o tecido tecnocientífico não existe à margem do próprio contexto social em que os conhecimentos e os artefatos resultam relevantes e adquirem valor. A trama tecnocientífica se desenvolve prendendo-se na urdidura de uma sociedade em que ciência e tecnologia desempenham um papel decisivo em sua própria configuração. Portanto, o entrelaçamento entre ciência, tecnologia e sociedade obriga a analisar suas relações recíprocas com mais atenção do que implicaria a ingênua aplicação da clássica relação linear entre elas.
Os capítulos deste livro pretendem elucidar os conceitos que permitem uma aproximação crítica e plural das relações entre estes três conceitos. Optou-se por fazer um tratamento substantivo de cada um deles, tentando responder sucessivamente às perguntas formuladas nos três primeiros capítulos (O que é a ciência?, O que é a tecnologia?, O que é sociedade?). Apesar de se ter optado por manter uma apresentação separada e numa ordem clássica de cada um destes três conceitos, ao longo dos capítulos correspondentes vão-se colocando suas relações recíprocas. De algum modo, em cada um dos três primeiros capítulos são realizadas análises separadas dos fios que vão tecendo as entrelaçadas relações CTS, que serão abordadas diretamente no quarto capítulo (O que é ciência, tecnologia e sociedade?). Nele se desenham estas questões relativas à interação entre estes três conceitos que foram sendo suscitados nos anteriores, até o ponto em que se oferece um panorama geral sobre o significado e os temas próprios das chamadas perspectivas CTS.
Nas páginas que se seguem pretende-se abordar uma visão geral sobre o estado da questão em relação com os três conceitos que dão o título a esta obra. No entanto, o tratamento de cada um de tais conceitos não pretende reduzir-se a uma introdução filosófica ou histórica da ciência ou da tecnologia ou aos tópicos da sociologia. O critério de seleção dos temas tratados em cada um dos três primeiros capítulos é o da sua relevância para uma adequada compreensão das relações recíprocas entre estes três conceitos. São, portanto, três abordagens sucessivas acerca da ciência, da tecnologia e da sociedade desde a perspectiva dos próprios estudos CTS, adotando o enfoque crítico e interdisciplinar. Entre os aspectos mais relevantes que aparecem reiteradamente nos quatro capítulos está a dimensão educativa das questões tecnocientíficas. A importância de uma alfabetização tecnocientífica como condição necessária para tornar possível a participação pública nestes temas aparece em diversos lugares. De certo modo, a educação para a cidadania seria o suporte imprescindível para tornar possível a democratização das decisões socialmente relevantes em relação ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
Esta relevância da dimensão educativa está presente também na própria organização de cada capítulo, onde se combinam o desenvolvimento do texto principal com outros que ampliam as possibilidades de estudos, ao se introduzir uma seleção de leituras complementares. Também se inclui ao final do livro um breve glossário. Pretende-se, assim, ampliar a utilidade deste texto para os diversos públicos que possam ter interesse nestes temas e, mais especificamente, para o professorado que possa e queira participar nos processos de alfabetização tecnocientífica visando à cidadania, à capacitação para uma participação democrática nas questões de desenvolvimento e de controle público da ciência e tecnologia. Com esta finalidade, a OEI tem empreendido a preparação de diversos materiais de fundamentação teórica e desenvolvimento didático para a educação em CTS. Tais materiais formam parte de um curso virtual sobre CTS para cuja documentação será também utilizada esta publicação.
Promover a cooperação ibero-americana no âmbito da educação CTS é um propósito próprio da programação de atividades da OEI, dentro da qual se insere este livro. O desejo de contribuir de algum modo para tal propósito é o que tem animado seus autores, desejo que esperam compartilhar com os leitores.
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